terça-feira, 3 de novembro de 2009

* VOO DO PÁSSARO DOURADO

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Trecho do livro Voo do Pássaro Dourado, diálogo entre Mathieu e Suzana, capítulo:
[...]

Mathieu, depois de espetar uma azeitona:
- Quem mais gosta ler, Suzana?
- Hummmm..., são tantos! Posso afirmar que Fernando Pessoa me faz muito bem.
- Magnífico.
- Versos que incluem reflexões filosóficas e sociais.
- Sim.
- Fernando conversa com a poesia de maneira extraordinário. Interroga o verso como se fosse matéria viva, questiona o verbo, fala dos adjetivos e dos substantivos como se quisesse dar lentes para a gente enxergar as coisas de um jeito menos rude, mais suave e doce.
- Parabéns. A obra dele é completíssima. Um dia li que seus versos constituiem-se numa solitária multidão de uma só pessoa.
- Verdade. Poesia é o silêncio que, quase sempre, preciso para respirar. Leio o poeta português como quem busca um ombro que me facilita a entender o cenário transitório da existência.
- Parabéns. Em prosa?
- Guimarães Rosa.
- Outro poeta, acima de tudo. Ambos tem recursos intelectuais de sobra. Dois clássicos que garantem que um
 um dos segredos da grande literatura é tornar o ser humano mais adulto e melhor.

- Com certeza. Rosa, Math, eu leio com atenção especial. Sou de Cordisburgo.
O rapaz abre mais o sorriso. Cheio de certeza:
- Boas escolhas, menina. Guimarães Rosa e Fernando, que incluem reflexões filosóficas e sociais em seus textos, são autores iluminados que a gente lê duas, três páginas e tem no que pensar durante um mês ou mais. Para eles a literatura é uma coisa viva.. Concorda?
-Totalmente. Sabe que ‘Grande Sertão: Veredas’, com todo o seu malabarismo verbal, foi escrito em Paris de forma, mineiramente, silenciosa.
- Um truque?
- Talvez.
- Exigiu deste ambientalista da literatura horas e horas de meditação criativa, sentado numa poltrona à luz de um abajur – explica a mulher.
- Ave, Rosa!... Até hoje não sei porque o poeta Ferreira Gullar não agradou nem um pouco da obra. Num través de rusgas, achou uma história de cangaço contada para lingüistas.
- Tolices. Muitos escrevem sobre Guimarães Rosa, poucos leram suas obras – torna a mulher condoída.
- Pior que é.
- Digo sempre aos meus alunos que Guimarães Rosa deve ser lido sem pressa, curtindo palavra por palavra. Que se iniciem com o conto ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’, coisa de cinema! Uma verdadeira partitura poética, um close reading na obra do senhor do neologismo.
- Traduz.
- Expressão que pode ser traduzida como leitura atenta ou leitura densa.
- Esnobe. Precisa inglesar?
- Vez ou outra, gosto de um sotaque inglês na língua portuguesa. Desculpe-me. O professor Moacyr Laterza, em suas aulas de filosofia, chamava de ‘leitura estática’, em oposição à moda da leitura dinâmica.
- No momento, Suzana, o que está lendo?
- ‘Primo Basílio’.
- Eça!... – surpreende-se Mathieu.
- Sim. Não foi o Eça que disse que se lê para viver, não foi?
- Não sei, foi?
- Acho que sim. Também gosto da ficção portuguesa, como da inglesa, da russa e da francesa  – suspira a mulher.
Mathieu, com entusiasmo, afirma:
- Não faço aquele tipo que endeusa escritores como se eles fossem algo muito superior. Digo que Fernando Pessoa, Lorca, Oscar Wilde, Shakespeare, Voltaire, Balzac, Flaubert, Dostoievsky, Tolstói, Machado de Assis, mortos há anos, não perderam o poder de entreter, muito menos o de desvendar o grande espetáculo humano através de suas grandes obras,
provando que histórias bem contadas, com caráter universal, tendem a funcionar em qualquer parte do mundo.
         - Sem sombra de dúvida.
- Livros que permitem entrar na intimidade de seus autores e na comunidade em que viveram. Na mesma visita, podemos compeender a visão política do universo de todos estes grandes artistas, como se fossem eles pilotos de uma nave que nos arrastam para muito longe.
- De fato.
- Continuam na lista dos mais lidos.
- Claro. Livro bom a gente lê não apenas pelo deleite, mas, também, para ajudar no conhecimento de si próprio. É o peso da palavra, ‘né?
Pausa. Mathieu acrescenta:
- Segundo alguns críticos, Lev Tolstói  e Willian Shakespeare são melhores do que quase tudo o que a humanidade produziu em termos de literatura. Cada um, a seu modo, buscou força vital nas atividades intelectuais para criar obras que auxiliam o ser humano a entender sua existência. Provados pelo tempo eles continuam atualíssimos – assegura Mathieu.
- Verdade?
- Ninguém mais do que esta dupla de autores compreendia o encantamento do público pela vida das pessoas mais privilegiadas.
- Evidente.
- Em comum, o domínio de uma técnica narrativa cativante, que consegue superar limites entre gêneros e temas numa carpintaria fenomenal do romance que provoca o leitor à elaboração mental de discursos e imagens.
Suzana rebate:
- Não sei se concordo. Math, voltando à literatura brasileira, me fala um pouco de Joaquim Maria Machado de Assis.
- Escritor singular que nasceu na pobreza em 1839, sem dúvida alguma, é o ponto mais alto e equilibrado da prosa brasileira. Dotado de habilidades de autor eclético e com admirável cabedal narrativo em sua arte plena de vida, ele ainda ocupa o lugar mais alto do pódio. Sua obra continua na lista das mais lidas. Incrível como é incrível Guimarães Rosa!
- Hein?
- A dialética machadiana não olvidou a lição dos clássicos na pretensão científica do ‘Alienista’ e loucura de ouros personagens. Em cada brasileiro mora um ‘dandi’ de Machado de Assis, o Bentinho..., e um jagunço de Rosa, o Riobaldo. Criaturas que ensinam cada um de nós a sobreviver. Dois escritores, em épocas diferentes, que deram de presente ao mundo uma nova forma de fazer literatura brasileira.
Pausa. Suzana:
- Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

[...] 

* Para ler o capítulo todo, clique:

http://milnovecentos68.blogspot.com/2011/01/32xxxii-o-sabor-do-texto-em-veredas.html

* Extraído do livro O VOO DO PÁSSARO DOURADO, Welington Almeida Pinto. FBN©/2011

32º/XXXII – O SABOR DO TEXTO EM VEREDAS UNIVERSAIS

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