terça-feira, 3 de novembro de 2009

* VENTO VIRADO, MONTES D’AGUA

.
MARÍLIA ROCHA

Iniciei-me na literatura de Guimarães Rosa pelo meu avô, que é tão velho como devem
ser os homens do sertão. Especulativo, ele escolhe as palavras com tamanha destreza,
que é preciso estar atento para não deixar escapar o sentido, a ironia e a graça do que ele diz. Foi ele que me trouxe o gosto pelas “narrativas multicoloridas dos velhos”, e me fez entender a importância de se chocar o que se faz e se fala antes de fazer e falar, como disse Rosa a respeito dos mineiros, esses seres “atilados”. Pois meu avô me apresentou antecipadamente a alma dos confins de Minas, do universo reinventado por Rosa. Mas foi a paisagem literária de Rosa que me devolveu de volta ao sertão, em forma de um filme de nome Aboio.


Tudo começou com um burrinho, miúdo e resignado, vindo não sei de onde. Entre
muitas referências ao canto dos vaqueiros, em “O burrinho pedrês”, há uma história
particularmente marcante, contada como verídica, e acontecida há mais de vinte anos
(estava-se em 1946), no fundo do sertão. O narrador conta que vinha com um grupo
de vaqueiros, trazendo para Minas uma boiada que, apesar de mazelenta e doente, era
ainda brava. Além dos bois, eles levavam também um menino de sete anos, que deixariam
no Curvelo. O menino chorava sem fim, infeliz como o gado, sem se conformar
em abandonar sua casa. A certo ponto, ele começa a
entoar uma cantiga muito triste, “linda como uma alegria
chorando”. O canto desassossega os bois e parece fazer a
“vaqueirada virar mulher”. A cantiga do menino não é
bem um aboio, não traz o tom arrastado e plangente, que
cadencia a desordem dos bois. Seu efeito é intenso,
estourado, mas se aproxima do aboio pela comunicação
gerada entre homens e bois por meio da música. O canto
do menino negrinho torna os vaqueiros nostálgicos e
alvoroça o gado. O final é trágico: o gado arrancado, dois
vaqueiros mortos, o menino desaparecido. O contador
explica: “Boi apaixonado, que desamana, vira fera...
Saudade em boi, ainda dói mais do que na gente...”.

No filme, a saudade se prolonga na fala dos vaqueiros.
Não como algo saudosista apenas, mas como presença
pungente, quase uma substância. Pedro Preto, vaqueiro
desde oito anos, aposentado há dez, revela que não tem
mais necessidade de fazer serviços a cavalo, mas que se
não montar todos os dias, fica doente. “Fica aquele
trem... parecendo que está faltando uma coisa em eu”. Ele
completa que, sempre que chove, se alembra dos tempos
velhos e abóia sozinho. Esse sentimento retorna ao final,
quando uma voz entoa, sobre imagens em preto e branco
de galinhas, patos e pavões no quintal de uma fazenda:
“O prazer de quem tem saudade, é saudade todo dia. A
saudade é tão ingrata, que todo dia maltrata. Além de
maltratar mata, a quem não tem alegria. Ô saudade companheira,
de quem não tem companhia”.

O preto e branco, em trechos filmados em super8, vem
dessa saudade companheira. Saudade de um tempo antigo,
em que convivem o presente da pecuária de alta
tecnologia, da ciência em lugar da oração, da imensidão
dos rebanhos mansos e sem nome, o desuso do canto de
trabalho, o digital colorido e a reinvenção do aboio pela
voz de grandes músicos, meio vaqueiros também. Em
uma passagem ouvimos Elomar:

“Olhe, se eu lhe contar uma história que aconteceu lá no
sertão nosso, lá no sertão do Gavião, assim que eu cheguei
para lá aconteceu isso. Pelo lado do tombo da Serra do
Matafogo, pro lado da Carantonha, lá pelas bandas do
riachão do Gado Bravo. Tem uma planura imensa, vai
puxando para aquelas vazantes, pro rio do Gavião. Vinha
uma pobre duma mulher, com uma criancinha dum lado
e com a barriga grande, andando. Ela vinha dentro duma
capoeira, que daqui um pouco se descampou assim numa
macega rala, numa capoeirinha baixa, aquele matinho
chamado cabelo de nego, murundu, numa espécie
de uma vereda. Quando ela sai na vereda, lá
na ponta destampa: um boi apanhado batido de
vaqueiro, boi levantado batido de vaqueiro e de
cachorro, escurraçado. Marruerão pé duro de
ponta fina, fera. Esse boi quando viu a mulher
partiu, partiu prá vara, prá furá ela, dar mil
furos nela. Ela deitou no chão, por cima da
criancinha de braço, esperou o boi, meteu a mão
no seio, tirou o punhal. O boi veio, ela tssss…”
Por essas vias, assim tortas, o filme encontra-se
com a literatura. Talvez o sentimento mais presente
na filmagem fosse nosso amor pelos
vaqueiros e bois. A admiração que tínhamos
pelo dom natural de contar histórias, a sabedoria
afetuosa dos vaqueiros, seu zelo com os
animais, a intimidade que os fazia transformarem-
se, eles próprios, em bichos.

Lêro, aboiador baiano, recita passagens de um
ABC, o romance dos vaqueiros. Naquela época,
mais de cem vaqueiros já tinham participado
do ABC, cada um continuando a história deixada
por outro. O que elas tinham em comum
era o fato de os protagonistas serem sempre
bois, seu ponto de vista é que conduz a narrativa.
Lêro diz que o ABC vem da antigüidade, e
conta a história de um tal boi Pedro Veneno,
“criado aqui numa Fazenda por nome ‘O
Alegre’. Todos os vaqueiros lutaram para pegar,
e nunca puderam pegar. Morreu de velho, e
ninguém pôde se apossear. Era um romance
bonito, ele chamava ABC. Hoje em dia é tudo
negócio de radiola e é diferente. Era o ABC.
Tinha cento e tantas estrofes, era o dia quase
todo para ler, mas era a coisa mais linda do
mundo, porque foi contado do dia que esse
bezerro nasceu, até o nome da vaca mãe do
cujo bezerro dava, no ABC. Era bonito.”

Da mesma forma, Ioiô Pituba, outro grande
narrador, conta como acompanha vacas e
bezerros à distância, ouvindo seus chocalhos.
Ele percebe quando a vaca está parida, quando
está ou não amamentando, quando o bezerro
chega e bate a cara no chocalho, quando o boi
mastiga, bebe, anda, corre. E conta isso acrescentando
o latido do cachorro, a proximidade
do vaqueiro, o som do chocado.

Essa sabedoria, que Rosa descreve como saber e
prudência que nascem do coração, liga os
homens aos animais, plantas e paisagens que os
circunda. O mesmo Ioiô Pituba, ao final do
filme, lembra o nome de alguns bois e afirma
que eles reconhecem o vaqueiro pelo cheiro.
“Tudo na vida tem que ter agrado”, ele diz
depois de chocar o silêncio. É assim que ele se
portava com os animais, bois e vacas, e também
com seus instrumentos de trabalho. Ioiô se dirige
aos bois com respeito, escolhendo as palavras,
porque sabe que, quando diz algo, não
pode desfalar, caso contrário o gado não o obedece.
A delicadeza desses homens não contrasta
com sua brutalidade. Ali muitos paradoxos se
desfazem, como bem mostra Rosa, e mesmo os
conceitos de bem e mal não são mais aplicáveis.
Como já foi dito a respeito de seus livros, eles
mostram que a gente do sertão vive sem consciência
do pecado original, e os antigos vaqueiros
guardam um pouco dessa inocência.

Talvez uma derradeira referência, que é também
apenas uma tentativa de receber uma luz
refratada, seja a tentativa de trabalhar a linguagem
cinematográfica de forma não cerebral.
Experimentar a densidade das imagens e
sons, deslocá-los por vezes, criando um intervalo
entre o que se mostra e o que se esconde.
Entre o vaqueiro que canta e o outro que responde,
a cena vista comentada por uma equipe
que está fora de quadro, as vozes dos músicos
que não estão ali, as mulheres que choram ao
ouvir o aboio, a feitiçaria, a fascinação do
canto, Diadorim no sertão pernambucano.
“Vento virado, montes d’água, levanta esse
vento que Jesus Cristo mandou”. Essas palavras,
repetidas três vezes por João Pião, protegeram
a equipe durante a filmagem. Assim o
filme procurou manter zonas de irracionalidade,
carregar o sertão dentro de si, sem nunca
ter lá vivido, apenas como uma memória distante
de algo que nunca nos pertenceu.

MARÍLIA ROCHA é cineasta. Realizou 11 filmes e vídeos documentários
e experimentais. Seu longa-metragem Aboio foi
selecionado para a Documentary Fortnight do Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque (EUA) e premiado no 10º É Tudo
Verdade – Festival Internacional de Documentários (Brasil).

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário