terça-feira, 3 de novembro de 2009

* UMA POÉTICA DA MIOPIA

.
Paulo Andrade conversa com Sandra Kogut
“Fazer um filme é uma coisa tão enorme, tão difícil, a gente
precisa estar tomado de desejo, ter uma vontade inabalável de
contar aquela história, falar daquele assunto, e esse livro era
assim pra mim” – com essas palavras, Sandra Kogut introduz-nos
na dimensão do desejo e do trabalho que envolveram a realização
de Mutum, filme nascido de “Campo Geral”, texto que abre o
Corpo de baile e conta a estória do menino Miguilim.

A obra de Guimarães Rosa, ainda pouco explorada pelo cinema,
ganha aqui, talvez, uma de suas mais intensas traduções fílmicas:
econômico, silencioso, Mutum não é apenas um belo filme – ele
nos causa, como o texto de Rosa, um duplo sentimento de familiaridade
e estranheza, assim como nos exige (e é de fato uma
exigência), num gesto paralelamente oposto ao do protagonista
Thiago/Miguilim, que retiremos os óculos, as lentes (como quem
depõe as armas), para, já sem recursos, melhor vermos o visível
e o invisível da vida.

P.A. Você afirma que Mutum não é exatamente
uma adaptação de “Campo Geral”, que é
bem mais uma “conversa” com o texto rosiano.
No entanto, a estória de Miguilim é bastante
preservada pelo filme. O que parece se
distanciar é justamente a linguagem fílmica,
que faz escolhas quase que contrárias às de
Guimarães Rosa. Refiro-me sobretudo a uma
radical opção pelo despojamento e pela contenção,
em oposição a certa exuberância da
escrita rosiana.


S.K. Quando começamos a trabalhar no
roteiro, uma das primeiras coisas que eu
disse a Ana foi: quero começar sem abrir o
livro, trabalhando só com as coisas de que
me lembro. Porque essas sensações, lembranças,
esses sentimentos que tinham ficado marcados em mim
desde a primeira leitura eram o motivo pelo qual
eu estava fazendo esse filme. E isso eu precisava
preservar, se quisesse que o filme, mesmo
que profundamente ligado ao livro, pudesse
existir com vida própria. O que me levou
a querer fazer esse filme não foi o desejo
de adaptar Guimarães Rosa, que eu adoro
(ao contrário, isso até me fez hesitar e
muito, levei anos para tomar coragem, porque
me parecia uma responsabilidade
enorme, provavelmente uma loucura), mas
o fato de que esse livro fala da infância de
uma maneira tão justa, tão profunda, tão
orgânica, que eu tinha a sensação de
conhecer o Miguilim, mesmo não sendo
particularmente familiar ao universo sertanejo
dele. Eu me sentia muito próxima
dele, me sentia íntima, e foi isso o que me
guiou o tempo todo, ao longo das diferentes
fases do trabalho.

Seguimos então o caminho sensorial, das
sensações, dos sentidos, que foi como traduzimos
a exuberância da linguagem do
Guimarães Rosa. Tudo muito ligado às percepções
desse menino, sua maneira de
estar no mundo e intuir as coisas, que
quase nunca são realmente explicadas a
ele. Uma linguagem que não é verbal. E que
para mim é mais cinematográfica também.

Sobre a economia que existe no filme,
onde tudo é muito mais sugerido, intuído
do que mostrado, posso dizer várias coisas.
A primeira é uma questão de gosto pessoal.
Sempre me interessei mais por filmes
que contêm espaços vazios, de respiração,
onde o espectador pode, ele também, se
projetar. Não gosto de filmes que são como
túneis, em que você não pode nem olhar
pro lado, e nos quais estão sempre te
explicando várias vezes o que sentir, quando
e onde. Acredito que contar uma estória
está mais ligado a transmitir emoções e
sensações, e que os acontecimentos são
decorrência disso. Não acredito em filmes
que enumeram acontecimentos de uma
maneira objetiva e externa. Na estória do
Miguilim, os acontecimentos são muito
mais experiências subjetivas e as paisagens
são paisagens internas.

Tinha muita preocupação em não me afastar
disso, porque acreditava que aí estava
a alma do filme. Uma cena descrita com
exuberância de detalhes num livro pode se
tornar totalmente excessiva num filme, em
que a imagem pode virar meramente descritiva
ou ilustrativa. Quando isso acontece,
acho que não é mais cinema, e o motivo
pelo qual estamos ali se perde.

De uma certa maneira, esse aspecto elíptico
do filme talvez seja o que mais o aproxima
da literatura. Sobrevivem ali espaços
onde podemos imaginar e projetar, nada
está sendo simplesmente mostrado. A imagem
não é um fato.

Finalmente, acho que, por um outro caminho,
fomos muito fiéis ao Guimarães Rosa.

Aconteceu algumas vezes, durante a filmagem,
de algum dos atores dizer alguma
coisa que não estava no roteiro e sim no
livro ou então que vinha de outro livro dele.

E é preciso lembrar que ninguém nunca
leu o roteiro, que ninguém sabia da estória
e menos ainda de que se tratava de
Guimarães Rosa…! Mantivemos isso em
segredo, porque eu tinha medo que intimidasse
as pessoas, que criasse uma relação
muito solene com o trabalho. Ou então
uma relação externa, cerimoniosa. Então
acho que fomos fiéis a ele numa certa
maneira de estar ali, de chegar nas pessoas,
de olhar para elas e para o universo
delas. Por isso a idéia de diálogo.

P.A. O recurso do close nos rostos dos personagens,
sobretudo no de Thiago, aliado à
delicada exploração do fora-de-campo, me
sugeriu em Mutum o que eu chamaria de uma
“poética da miopia”. A câmera perscruta a
imagem, mas como se algo estivesse escrito
na própria superfície do rosto, como se nós,
expectadores, em alguma medida também
míopes, precisássemos dessa proximidade
do rosto de Thiago, para aí enxergarmos algo
que não vemos, mas que pode nos ser dado
pela simples evidência do rosto que o filme
nos convida insistentemente a contemplar.

S.K. Não saberia dizer isso melhor! A
intenção é essa mesmo, fico feliz que você
tenha sentido dessa maneira. Como dizia
na pergunta anterior, o filme não tenta
explicar os fatos, mas trazer as sensações
de Thiago, a maneira de ele perceber o
mundo. A miopia não é um mero fato que
de repente explica tudo. É mais uma leitura
possível de como o Thiago se sente.
Uma simbologia da própria infância.
Quando a gente é criança, o nosso quarto
é o mundo inteiro, e além dali, tudo é misterioso,
nebuloso. O universo de Thiago é
apertadinho, ele só enxerga mesmo o que
está ao alcance da mão. Mas isso não é só
físico, é como ele se sente. Então o filme
foi feito assim. A primeira vez em que aparece
um horizonte na tela é no final, quando
ele bota os óculos e vê o Mutum pela
primeira (e última) vez. Mas ali não são só
os óculos, é muito maior, é o próprio crescimento
do Thiago. Até então o filme é
mais claustrofóbico, porque estamos sempre
com o Thiago, sentindo com ele, e não
descrevendo o que poderia ser essa visão
dele. Perguntaram-me várias vezes na fase
de preparação como eu ia filmar a miopia,
se eu ia desfocar a imagem. Essa pergunta
sempre me surpreendia. Isso nem nunca
me passou pela cabeça. Seria descritivo,
redutor, tornaria a miopia uma simples anedota.
De novo, o que me interessava
eram as paisagens internas. Da mesma
maneira, é mais rico ver o Thiago vendo,
do que simplesmente descrever o que ele
vê. Nenhuma imagem teria a riqueza e a
complexidade do olhar dele. Em vários
momentos no filme, somente intuímos,
não vemos. Como o Thiago. É um jeito de
preservar a imagem que estaria além da
superfície plana da tela, que não é descritiva,
mas sensorial.

P.A. A duração dos planos e a ausência de
trilha sonora permitem a experimentação
com o silêncio, os sons da paisagem, as
conversas quase sussurradas, ao mesmo
tempo em que promovem uma contenção do
lirismo. Nesse sentido, o filme parece nos
instigar mais a um movimento também silencioso
e interno, como se devêssemos ter um
imenso cuidado, porque o que ele guarda de
mais precioso pode de repente ser quebrado
por palavras, como se o olhar também devesse
se recolher na contemplação para melhor
ver, para melhor pensar, um pouco como a
imagem do corpo de Thiago enrodilhado e
solitário durante a chuva
.

S.K. Inicialmente eu tinha a intenção de
usar música no filme, mas na montagem
percebi que seria impossível. Toda vez que
tentava, o filme virava outro filme, deixava
de ser na pessoa do Thiago e se tornava
“era uma vez…”. A música parecia um
elemento externo, “colado” ao filme, trazendo
um tipo de emoção muito diferente,
que não está vindo de dentro das cenas,
mas de uma espécie de comentário do
diretor, paralelo ao filme. Algumas pessoas
achavam que a música tornaria o filme
mais acessível, mais comercial, e havia
pressões. Não foi uma decisão fácil de
tomar. Mas ao mesmo tempo nem sei se
posso dizer que foi realmente uma decisão:
foi na verdade uma imposição do próprio
filme. Ao longo do processo de trabalho, a
maioria das escolhas vai se impondo como
evidências trazidas pelo próprio filme, por
mais radicais que elas às vezes possam
parecer. Em várias projeções as pessoas
falam que nem tinham reparado que não há
música, que só perceberam no final, quando
entra a música nos créditos.
Agora, trilha sonora existe sim. A maioria
dos sons do filme foi trabalhada como
música. Durante a filmagem, gravávamos
muitos sons para cenas específicas, trabalhamos
também com um roteiro de sons. A
maioria era sons da natureza, que estavam
associados a certas emoções: sons tristes,
solitários, assustadores… Depois da filmagem,
ainda ficamos mais três dias só para
fazer sons. Claro que tudo isso fica numa
fronteira muito sutil entre realismo e fantasia.
Quantos sons são mesmo daquela
cena, quantos estão só na cabeça do
Thiago? O filme está sempre nessa fronteira,
porque estamos sempre com o Thiago,
e ele mesmo não sabe ao certo responder
a essa pergunta.

Desde o início, eu sabia que queria trabalhar
os sons dessa maneira. Achava que o
fato dele estar tão ligado na audição era
uma boa maneira de contar que ele não
enxergava direito. Muitas vezes, a percepção
dele dos acontecimentos era somente
sonora, ou então era primeiro sonora.
Também acho que o som leva muito rápido
para um mundo interior, que era o que eu
sempre pensava quando pensava no Thiago
sentindo aquelas coisas.
O tempo das cenas é uma outra questão:
eu nunca dava para eles o tempo, assim
como não dava marcas. Eu queria ver
como seria eles “sendo” aqueles personagens.

Quando você trabalha com não-atores,
você vai se encontrar com eles no
meio do caminho, o resultado é uma mistura
entre o que você imaginou e o que
eles são. Eu queria isso, ver como eles
viveriam aquelas situações. Os tempos vieram
deles e me pareciam verdadeiros,
comoventes. Muitas vezes a artificialidade
de uma cena num filme vem disso: de um
tempo errado, externo, mecânico. Eu queria
ver como seria o tempo deles.

O mais engraçado é que essa temporalidade,
que pode às vezes parecer radical, foi
percebida de um jeito totalmente diferente
na roça. Várias sessões em praça pública
foram organizadas em cidadezinhas do
sertão, sessões maravilhosas, lotadas, às
quais vinham as pessoas da zona rural, e
esse público – a maioria de pessoas que
nunca foram ao cinema na vida – achava o
tempo do filme totalmente normal.

P.A. Lendo sobre o processo de filmagem de
Mutum, a preparação do elenco, a escolha
das locações, enfim, sobre todo o cuidado e
a reserva na feitura do filme, preocupados
que vocês estavam com os laços que ele
faria com as pessoas envolvidas, lembrei-me
bastante da declaração de Rosa de que “a
literatura tem de ser vida”. Esses procedimentos
tomados por você e pela equipe de
Mutum, que revelam sua trajetória pelo
documentário, também me parecem testemunhar
sobre um novo caminho que tem surgido
através de alguns filmes recentes do cinema
brasileiro. Curiosamente esses filmes comungam
o desejo de encontrar uma espécie de
ponto de tangência entre a vibração interna
da ficção (sua verdade) e o “coração selvagem”
da vida. Vocês acreditam que, nesse
momento, a força renovadora do cinema brasileiro
de ficção pode vir da linguagem do
filme documentário?

S.K. Esses rótulos são perigosos. Claro que
talvez seja mais fácil estar perto da vida
com uma equipe pequena, móvel e flexível.
Mas o principal é desejar isso. Quando
é isso que se procura num filme, acho que
é sempre possível fazer, com diferentes
graus de dificuldade. É bom lembrar que
documentários também podem ser congelados
e artificiais, formatados e padronizados.
Acho que o que traz vida a um filme
é o tipo de desejo que está fazendo aquilo
existir. Sempre tive a impressão de que
existem filmes que se parecem com cinema
e outros que se parecem com a vida.
As pessoas procuram coisas diferentes.
Muitas vezes a palavra “cinematográfico”
está associada a algo espetacular, fora do
comum, e os filmes se tornam uma acumulação
de momentos escolhidos a dedo,
catálogos das coisas mais incríveis. E
quanto maior a equipe, mais isso tende a
crescer, porque cada um pensa no seu trabalho,
e quer fazer o melhor possível dentro
da sua área de atuação. Mas um filme
é uma unidade, um todo. Quando alguma
coisa se destaca das outras, eu já acho que
ela não funcionou. Tudo tem que parecer
uma coisa só, indissociável das outras. No
Mutum tentamos fugir desse “cinematográfico”.
O filme é simples, não tem paisagens
de tirar o fôlego, música estonteante,
pôr-do-sol, nada disso. Trabalhamos com
uma equipe pequena e, dentro do possível,
polivalente. As referências eram sempre a
relação concreta com a vida naquele lugar.
A natureza não era uma paisagem a ser
contemplada, mas um lugar de trabalho.
Às vezes me perguntam se a minha intenção
era produzir um filme mais realista.
Não, não era. Um filme é sempre uma
mise-en-scène e a única realidade que
existe é a realidade interna dele. A minha
intenção era fazer um filme que estivesse
sempre perto das pessoas, um filme numa
escala humana. Por isso escolhi esse
caminho. Tudo veio das pessoas, e elas
eram a minha medida.

P.A. A história de Miguilim é bastante sofrida.
O mundo se apresenta a ele com muita
violência: o fracasso da comunicação com o
pai, a morte do irmão, os enigmas próprios
da infância, que esbarram na face opaca da
vida. A seqüência final, com a partida de
Miguilim, que representa a “despedida da
infância” – ou a sua travessia, para usar uma
palavra cara ao Rosa – abre também para a
promessa de um novo olhar sobre o mundo,
agora mediado, ajustado pelas lentes dos
óculos. Lentes que também acabam se tornando
metáfora da câmera cinematográfica.
Será que podemos encontrar aí uma “função”
existencial (ou política, como se queira)
do cinema: o filme como filtro do mundo,
que nos possibilita sustentar o olhar, encarar
o ininteligível da vida sem desviar os olhos?


S.K. Qualquer forma de trabalho, de
expressão, é também uma forma de apreensão
do mundo, de conhecimento, de
autoconhecimento. Senão, pra quê? Mas
isso não é um privilégio do cinema, ainda
bem! Eu pessoalmente acho que só faço
filmes porque sou fascinada por pessoas,
gosto de olhar para elas, me relacionar
com elas. Em qualquer situação o que me
interessa é sempre o humano. Então trabalho
assim. Todo o resto, a máquina do
cinema, a carreira cinematográfica, nada
disso me interessa. Às vezes, na filmagem,
eu estava sobrecarregada com as
pressões, os problemas, ou cansada, chegava
no set às cinco horas da manhã,
olhava pros meninos e aquilo era uma
imediata certeza: eu queria estar ali, e
queria me emocionar com eles. Acho que
um filme é isso: dividir a complexidade
humana com os outros. Se isso não acontece
num filme, ele não existe de verdade,
se torna um mero gesto estético, provavelmente,
vazio.

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

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