terça-feira, 3 de novembro de 2009

* O DIÁRIO SILENCIADO DE ROSA

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Eneida Maria de Souza


No Arquivo Henriqueta Lisboa, entre documentos de outros escritores, encontra-se uma cópia do Diário de guerra de Guimarães Rosa, período em que serviu como cônsul-adjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942.1 O documento é de rara importância para o esclarecimento das relações políticas existentes entre o Brasil e a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, além de revelar a escrita em processo do escritor. Entre silêncios e rasuras e sem menção direta à ajuda prestada à causa
judaica por Rosa e sua companheira de trabalho e futura mulher, Aracy Moebius de Carvalho, o Diário denuncia a ascensão do regime totalitário e excludente representado pelo nazismo.

O então aspirante a escritor registra, anota, desenha, faz colagens e cópias de notícias sobre a situação da cidade às vésperas da guerra, assim como outros informes de seu cotidiano. O inventário pessoal de Rosa se compõe de observações sobre os alarmes constantes de bombas; impressões de leituras; registro de saídas e visitas aos amigos; recortes, em alemão, de fatos sobre a guerra; anotações para futuros textos literários; desenhos de lugares e de pessoas; anedotas, listas em alemão de nomes da flora e de espécies de temperos; referências sobre a revisão dos contos de Sagarana, ainda inédito. O Diário se assemelha, portanto, a uma caderneta de notas, pelo seu caráter híbrido, entre o documento
e o exercício da escrita subjetiva, prática que acompanhará Rosa nas viagens ao exterior e nas andanças pelo sertão, sempre à cata de material para a narrativa fabulosa que estava compondo.

Na escrita do Diário de guerra, o leitor se depara com os bastidores
da criação, nos quais se esboçam as experiências do escritor frente
à sua produção literária e existencial. O cuidado em reunir a gênese
dos textos com a do autor permite à crítica expandir o registro
documental dos arquivos e recuperar estágios pré-textuais como
meio eficaz de produção de biografias. A página de rascunho, metaforicamente
considerada o jardim íntimo do escritor, expõe o que o
texto definitivo não transmite: a imaginação sem limites, os recuos
da escrita, os borrões, o espaço no qual a face escondida da criação
deixa transparecer a paixão da obra em processo. Página branca,
marcada de signos negros, torna-se a imagem do espelho, capaz de
refletir as relações pessoais do escritor com o texto, onde se supõe
ser tudo permitido. Pela liberdade de rasurar, de escrever entre as
linhas, de acrescentar aos originais margens desordenadas e rebeldes,
este laboratório experimental desempenha papel importante na
história da literatura moderna. O entusiasmo pelo processo da escrita
e o interesse pela gênese dos textos ultrapassam a curiosidade do
crítico em penetrar nos bastidores da criação e atingem dimensões
próprias ao exercício literário e biográfico.

Em 1934, Guimarães Rosa ingressa na carreira diplomática, deixa
a medicina e torna-se, nas décadas seguintes, um dos maiores
escritores da literatura brasileira. Publica, em 1946, o primeiro
livro de contos, Sagarana, e em 1956, Grande sertão: veredas e
Corpo de baile. Em plena fase de uma modernidade reciclada pelo
projeto industrial de modernização do Brasil, o escritor mineiro
volta-se para a tradição, apropriando-se da matéria regional como
pano de fundo à experimentação de linguagem. Reúne procedimentos
revolucionários na literatura com temas considerados
arcaicos, e rompe com a tendência hegemônica reinante nas manifestações
modernas, voltada para o nacionalismo, ao se abrir para
a proposta universalista.

Sem descartar dados de ordem política que atenuem a imagem de
conservador e apolítico imputada a Guimarães Rosa, o exame de
sua atuação intelectual relativa a essa época remete obrigatoriamente
à associação entre a escrita diplomática, o exercício autobiográfico
e as recriações literárias. Lidar com a história pessoal ou
coletiva significa alçá-la à categoria de um texto que ultrapassa e
metaforiza os acontecimentos, sem recalcar o valor documental e
o estatuto da experiência que aí se inscrevem. O gesto artístico se
sustenta por meio do ritmo ambivalente motivado pela proximidade
e pela distância diante do fato. O escritor procede à colagem de
anúncios fúnebres, publicados em jornal, sobre a morte de alemães
em sacrifício pela pátria, ao lado de informação pessoal sobre a
venda de seu carro. No mesmo espaço da página, pelo efeito de
montagem, o estranho torna-se familiar e contrasta com o sentimento
de propriedade manifestado por Rosa. Discursos heterogêneos
são simultaneamente expostos e colocados em oposição. A
propriedade individual, típica do regime capitalista e burguês, se
choca com os anúncios de mortes coletivas causadas pela guerra:
21.XI. 1940 – Vendi o automóvel hoje. Lá se foi o
meu HH 727, por 2.535 Reichsmark. Que venham outros,
mais tarde!
20.XI. 1940
Foi vítima de um ataque de aviões britânicos a um
bairro residencial de Hamburgo a companheira
Elfriede Festersen [17 anos]
Ela também morreu pela Alemanha!
NSDAP Distrito Hamburgo 1
Rümker, p/ chefe de distrito2

Por se tratar de um texto fragmentado e lacunar, como é a estrutura
do diário, cresce, contudo, sua importância como documento do
escritor/diplomata que vivenciou o período marcado por grandes
conflitos internacionais. Essa prática se manifesta no contato real
com a cultura européia, ameaçada pela barbárie da guerra e da distorção
dos princípios de cidadania e liberdade. O avanço tecnológico
resultante da modernização se desviava para o aprimoramento dos
instrumentos bélicos, para a exclusão étnica e o extermínio das cidades.

Como reagiria o Guimarães Rosa poliglota, recém-chegado ao
continente para cumprir missão diplomática, com os originais de
Sagarana na mala e ainda interessado em aprimorar seu espírito cosmopolita?

Como conciliar alarmes de bomba, notícias transmitidas
pelo rádio sobre ataques aéreos e mortes com o trabalho no Consulado,
a revisão dos contos, a curiosidade do escritor por tudo que se referia
à língua e à cultura alemã, e, por extensão, à européia?

O pacto de Rosa com a linguagem se pontua nesse intervalo, na
pausa entre textos e vivências construídas em contraponto, em que
o diplomata divide com o escritor a missão de desconfiar do apelo
da racionalidade moderna, contaminada pela destruição e ruína dos
valores. Silenciar este texto e censurar o diálogo futuro com os
leitores concedem ao Diário de guerra o destino de textos relegados
ao esquecimento e convertidos em falsa mitologia.

1. Os originais foram transcritos, anotados e editados por Reinaldo Marques, Georg Otte e por
mim, na condição de pesquisadores do Acervo de Escritores Mineiros do Centro de Estudos
Literários da UFMG.
2. Trata-se de um anúncio de jornal,


ENEIDA MARIA DE SOUZA é professora emérita da Faculdade de Letras da UFMG. Autora,dentre vários títulos, de A pedra mágica do discurso, Crítica cult (Editora da UFMG) e Tempo de pós-crítica (Veredas&Cenários).

Fonte: internet
Para ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

Mais:
GALERIA DE IMAGENS FOLHA:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/p_20080424-guimaraes01.shtml

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