terça-feira, 3 de novembro de 2009

* MUTUM: NOTAS DE FILMAGEM

.
Sandra Kogut


A primeira pergunta que me fiz foi: será
que esta estória, escrita nos anos 50,
poderia ainda acontecer hoje? E, se
pudesse, como ela seria e qual seria a cara
desses personagens? Durante um ano e
meio fiz várias viagens pelo sertão de
Minas. Inicialmente para conhecer as pessoas,
o lugar, em seguida para procurar as
crianças do filme.

Achava fundamental que meu primeiro
contato com as pessoas fosse direto, sem
passar por intermediários tais como produtores
de elenco ou de locação. Porque se
não existisse uma relação de confiança
muito sólida entre eu e eles, seria impossível
trabalhar com atores não-profissionais.

Fiz as viagens com a Ana Luiza Martins
Costa – co-roteirista do filme, que conhecia
bem a região. Íamos nas escolas rurais
do Norte de Minas, algumas perdidas na
mata, onde as crianças vão a cavalo, ou
caminham horas para chegar. As professoras
me deixavam trabalhar com pequenos
grupos formados na hora. Na época, dizíamos
apenas que estávamos fazendo uma
pesquisa com crianças no sertão, sem
ainda falar que isso viraria um filme se
tudo desse certo.

Ao todo conheci em torno de mil crianças.
Numa segunda fase selecionei um grupo
de vinte e cinco, vindas de lugares diferentes
do sertão mineiro. Dentre as vinte
e cinco tinha um grupinho de sete que
eram as minhas preferidas, mas precisava
conhecê-las melhor. Será que elas agüentariam
fazer um filme? E por que elas
teriam vontade? O cinema não faz parte
da vida delas, e para muitas nem mesmo
a televisão.

Algum tempo depois, reunimos esse grupo
numa cidadezinha e, durante duas semanas,
fizemos pequenas oficinas, que me
permitiram escolher os meninos. Foi uma
experiência humana riquíssima. As estórias
daquelas crianças, suas personalidades,
seus comentários, foram desenhando
o universo no qual o filme se construiu.
Dois meses depois fizemos outra oficina,
dessa vez com homens e mulheres da região,
vaqueiros, senhoras, enfim, candidatos a
todos os personagens do filme que trabalharam
lado a lado com atores profissionais e
com as crianças. Todo mundo junto. Era uma
troca: de um lado os jovens atores – acostumados
com a situação de estar numa oficina
–, embarcavam com mais facilidade nos
exercícios propostos. De outro os não-atores
faziam todos os exercícios sem interpretar:
eles choravam e riam de verdade, trazendo
uma dimensão humana diferente ao trabalho.

A escolha das locações foi em função das
relações com as pessoas da região. Não era
uma questão de paisagem. Queria filmar
onde a gente tivesse estabelecido as relações
mais sólidas, onde eu me sentisse em
casa na casa das pessoas.

A escolha de filmar numa fazenda de verdade
não foi por razões etnográficas, mas
para permitir que o elenco compartilhasse
um cotidiano. Eles trabalhavam juntos,
cuidavam dos bichos, capinavam. A casa
funcionava. Quando aos poucos a equipe
técnica foi chegando, eles tinham vontade
de pedir licença pra entrar, como se estivessem
chegando na casa de alguém, e não
num set que estava ali à disposição.

A maior parte das pessoas que atuam no
filme não é ator profissional. A maioria
das crianças e dos vaqueiros nunca foi ao
cinema. Mutum é o resultado de um longo
trabalho de preparação, no qual o elenco
viveu junto na fazenda onde a história
acontece. Aos poucos formaram uma família,
antes mesmo do início da filmagem.

Dividiram uma experiência de vida, diretamente
ligada à história contada no filme.
Ninguém leu o roteiro. Tudo foi transmitido
oralmente e o trabalho de atuação se
construiu a partir da proximidade entre a
vida deles e a de seus personagens.


SANDRA KOGUT é cineasta. Estudou Filosofia e Comunicação
na PUC-RJ, realizou o documentário Um passaporte húngaro
(2001) e os vídeos Adieu monde (1998) e Lá e cá
(1995), entre outros.
FONTE: INTERNET
ILUSTRAÇÕES: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

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