terça-feira, 3 de novembro de 2009

* A MARGEM DA CANÇÃO

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ALEXANDRE AMARO E CASTRO

Ilustra trabalhos, grafite sobre papel, de LETÍCIA GRANDINETTI.
Ver: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

“A terceira margem do rio” é uma narrativa
sobre o silêncio. O silêncio de um pai
que habita o lugar do impossível – o oco
da canoa parada em meio ao fluir das
águas; o silêncio de uma família perplexa
diante do abandono; o silêncio do narrador
que cala em si suas tristes palavras: “sou o
que não foi, o que vai ficar calado”.

“A terceira margem do rio” é também uma
narrativa sobre a palavra. A palavra interdita
na relação da família: “pai”, “louco”,
“morte”; a palavra-matéria que se constrói
no lugar da ausência: “cê vai, ocê fique,
você nunca volte!”; a palavra confessional
com que o filho resume seu “falimento” no
desfecho do enredo: “E eu estou pedindo,
pedindo, pedindo um perdão”.

“A terceira margem do rio” é uma narrativa
sobre um silêncio que diz.
Como, portanto, extrair a música do intervalo
entre o silêncio e a palavra? Em que
terceira margem habitam os componentes
de melodia, harmonia e ritmo adequados a
cantar aquilo que não se diz? E, por fim,
como sintetizar numa letra aquilo que já
nasceu como a síntese da dor pela falta?
A canção “A terceira margem do rio” foi lançada no cd Txai,
de Milton Nascimento, em 1990, e regravada em Circuladô,
de Caetano Veloso, em 1991. O conto mereceu a parceria. A
versão de Milton é grandiloqüente. Metais, percussão, cordas,
coro. A versão de Caetano tende ao mínimo. Violões, moringa
e voz. Violões que pontuam a harmonia, reproduzem os
elementos melódicos e se ausentam para deixar soar o essencial,
o silêncio e as palavras. O som das moringas sugere e presentifica
a água, ecoa o rio que o pai habita para sempre. A voz condensa
a expressão da dor, num canto de saudade e lamento.

Ao abordar o enredo do conto, a canção potencializa e
transcende imagens e sensações inerentes à escrita de
Guimarães Rosa. Afeito a leituras musicais de textos poéticos,
Caetano já havia deixado sua marca na adaptação do poema
“O Pulsar” de Augusto de Campos, no álbum Velô, de 1984.
Mas ali, só coube a ele a simples (?) e genial idéia de
transformar estrelas e esferas em notas musicais, “lendo” o
poema como uma partitura.

Aqui não. A começar pelo fato de se tratar de uma parceria
com Milton Nascimento, criador de melodias que, por sua
beleza, tendem a suplantar o teor verbal das canções. Some-se
a isso a difícil tarefa de plasmar na letra aquilo que já se
consagrou na linguagem literária de Guimarães Rosa. Nem só
palavra, nem apenas melodia, “A terceira margem do rio” é
também um terceiro caminho, uma canção-homenagem ao que
há de mais universal em Milton e em Rosa.

Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

É por deslocamento que pensamos essas imagens. A canoa diz,
o rio ri. O rio e a canoa acolhem e reduplicam o desejo do pai,
determinado a atravessar por onde só ele sabe que o rio dá vau.

O que o silêncio oculta, o gesto diz. Atitude fora do uso, do
senso, como é próprio da poesia; e como é próprio de poetas
como Rosa e Caetano, na busca do vau da linguagem, onde se
operam sentidos, imagens, sons e silêncios plenos de beleza,
para além da massificação a que o uso sujeita as palavras.
Essa é a síntese da letra de “A terceira margem do rio”.

Sucessão de imagens que sugerem, desenham. O que Rosa
narrou, Caetano delineou, convertendo a “terceira” em
“certeira”, o “olvido” em “ouvido”, a “asa” em “brasa”. É a plena
realização do que Roland Barthes denominou o logro
magnífico, a trapaça salutar que o escritor deve ter em vista
para fazer a língua soar fora do poder.

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

É desse “puro silêncio” que trata o conto. Um silêncio
pleno de sentido, que não se oferece à luz da razão, e que por
ser intangível incomoda, instiga. A permanência do filho
através dos anos, “no devagar depressa dos tempos”, se deve à
esperança de um dia decifrá-lo. No entanto, assim como um
Édipo falido, que não decifra a Esfinge, nem toma o lugar do
pai, só lhe resta aprender o que Caetano Veloso condensou
nessa estrofe: que há uma outra luz, que se configura e se
expande para além da forma e do conteúdo, margens
limitadoras do pensamento e da criação. “Clareira, luz madura”
entre as margens da palavra. Fora da vida ou da morte, da
presença ou da ausência, da razão ou da loucura.

Caetano Veloso recolheu o sentimento essencial da narrativa e
reduplicou uma questão que se oferece em toda a obra de
Guimarães Rosa: como fazer a palavra atingir o que está fora
dela? Não há resposta, o que há é a Poesia:
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

ALEXANDRE AMARO E CASTRO é mestre em Literatura Brasileira pela UFMG com a dissertação
O alívio das manhãs: permanência e transgressão na obra Corpo de Baile, de João Guimarães
Rosa. Trabalha como professor e atualmente ministra cursos livres e preparatórios na Casa
da Letra – Língua e Literatura.

Fonte: Internet
Ilustrações: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/sl-junho-2008.pdf

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